Crowdfunding de investimento 2.0

Encerra-se no próximo dia 24 a audiência pública SDM n. 2/2020, por meio da qual a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) submeteu a consulta pública minuta de instrução alteradora da regulamentação sobre as ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários realizadas mediante plataformas eletrônicas de investimento participativo. Trata-se da primeira reforma substancial do marco regulatório do investment-based crowdfunding, também conhecido como investimento participativo, estabelecido em 2017 pela Instrução 588 da CVM.

Tal como regulamentado, o investimento participativo possui quatro características fundamentais. Assinale-se, em primeiro lugar, o baixo custo de observância regulatória de que se beneficiam os participantes, em virtude dos descontos regulatórios concedidos. As sociedades ofertantes, assim como as ofertas públicas, estão dispensadas de registro na CVM. Embora se sujeitem a registro e a deveres regulamentares, as plataformas eletrônicas gozam de regime menos oneroso do que os intermediários tradicionais de mercado.

Em segundo lugar, trata-se de modalidade de investimento de alto risco. As sociedades investidas são de pequeno porte e, não raro, constituem startups que se encontram em estágio inicial. Muitas delas não serão capazes de gerar lucro ou de sobreviver por mais de cinco anos. Além disso, os contratos de investimento coletivo ofertados publicamente são geralmente de longo prazo e possuem baixíssima liquidez. Mostra-se comum a oferta de nota conversível, que confere, inicialmente, ao investidor um crédito, que adiante, segundo as condições e os termos contratuais, pode transformar-se em ações.

A isso se deve acrescentar que, em razão justamente dos descontos regulatórios de que gozam, elas se submetem a um regime jurídico menos rigoroso do que os emissores de maior porte, que, constituídos na forma de sociedades por ações, seguem as prescrições da Lei das S.As. e se registram na CVM, assumindo, em consequência, diversas obrigações informacionais, que são fiscalizadas pela autarquia e também pela entidade administradora de mercado, caso os valores mobiliários de sua emissão sejam negociados em bolsa.

Em terceiro lugar, o investimento participativo é aberto a qualquer investidor, independentemente de sua experiência ou de seu conhecimento em finanças e mercado de capitais. É um instrumento de vocação popular, que pode ser oferecido publicamente por meio da internet, valendo-se das ferramentas tecnológicas dos meios digitais para alcançar o público investidor.

Por fim, o mercado de investimento participativo tem dimensões estritamente definidas na regulamentação, por meio de restrições que têm por finalidade precípua controlar a magnitude dos riscos suscitados. A Instrução 588 estabelece limites para os valores das aplicações dos investidores, bem como para os montantes das captações, além de circunscrever as atividades que podem ser desempenhadas pelas plataformas.

O diploma também restringe o porte das sociedades que podem captar por meio das plataformas, em função da sua receita anual, mas, nesse caso, a medida tem por objetivo principal assegurar o direcionamento dos investimentos para as sociedades de pequeno porte, que são aquelas que mais enfrentam dificuldades para obter recursos pelos canais mais tradicionais.

Em suma, tais atributos conferem ao modelo brasileiro a capacidade de prover um canal de financiamento de baixo custo e amplo acesso popular, que se amolda às necessidades de capital das sociedades emergentes. Por sua dimensão reduzida, as captações não seriam realizadas pelos instrumentos usuais de private (fundos de investimento em participações) ou public equity (ofertas públicas de ações), que, se de um lado oferecem governança mais robusta, de outro envolvem custos regulatórios mais elevados. Desse modo, o crowdfunding de investimento preenche uma lacuna, provendo financiamento a empresas que, em razão do seu estágio, enfrentam maiores dificuldades para ter acesso a capital.

Ampliação e aperfeiçoamento

A reforma pretendida, em suas linhas gerais, procura estender e aperfeiçoar o modelo normativo existente, que desde 2017 tem sustentado o crescimento consistente do mercado de investimento participativo, como refletem os aumentos registrados nos números de ofertas, de volumes captados e de plataformas credenciadas¹.

De acordo com a proposta, o volume que cada sociedade ofertante poderia captar por ano passaria de 5 milhões para 10 milhões de reais, ao passo que o valor máximo por aplicação saltaria de 10 mil para 20 mil reais, ressalvadas algumas hipóteses em que tal limite poderia ser ultrapassado². A reforma também pretende ampliar o universo de sociedades empresárias contempladas, que passaria a abranger aquelas com receita anual bruta de até 30 milhões de reais e receita consolidada de até 60 milhões de reais.

A benfazeja expansão dos limites vem acompanhada de aperfeiçoamentos, que buscam gerar maior eficiência para as operações, como, por exemplo, a flexibilização dos meios de divulgação das ofertas. Outra proposta digna de nota é a autorização para as plataformas atuarem no mercado secundário dos títulos ofertados, promovendo a intermediação entre pessoas interessadas na compra ou venda. O objetivo é desafiador, haja vista a baixa liquidez do mercado e escassez de informação sobre os títulos e os seus emissores. De modo a mitigar a assimetria informacional entre compradores e vendedores, a CVM propõe que o mercado secundário organizado pelas plataformas se limite aos investidores que já tenham participado de alguma oferta do emissor.

Em outros casos, os aperfeiçoamentos buscam proporcionar maior segurança para os investidores. Nesse tocante, são muito bem-vindas as iniciativas regulatórias destinadas a reduzir ou eliminar riscos que não tenham relação com o mérito do investimento. No entanto, qualquer medida deve ser cuidadosamente avaliada à luz dos benefícios e dos custos esperados.

Segundo a proposta, as sociedades com receita anual bruta superior a 5 milhões de reais passariam a ter a obrigação de contratar auditor externo para a revisão das suas demonstrações financeiras, enquanto aquelas situadas abaixo desse valor permaneceriam dispensadas. Embora indiscutível o ganho na confiabilidade das informações contábeis, não há evidências de que se tenha escolhido o piso mais apropriado.

Para colocar a questão em perspectiva, vale lembrar que a lei brasileira somente torna obrigatória a auditoria externa, independentemente do acesso à poupança pública, para as sociedades limitadas consideradas de grande porte, que disponham de ativo superior a 240 milhões de reais ou receita bruta anual superior a 300 milhões de reais³. A distância que separa esses valores daquele sugerido na reforma da CVM coloca em dúvida se a imposição de auditoria independente é de fato condizente com a realidade das empresas com receita anual até 30 milhões de reais, o teto proposto na consulta.

Ao se introduzir novas regras protetivas, há de se cuidar para que as despesas que lhe sejam associadas não frustrem a atratividade do investimento participativo, cuja utilidade, convém repetir, decorre do baixo custo imposto pela regulação. A consequência pode ser conflitante com outro objetivo declarado da CVM, que é ampliar o universo de sociedades participantes desse mercado.

A mesma reflexão vale para a proposta de contratação de instituição escrituradora. Novamente, mostra-se incontroverso o ganho que a medida proporcionaria ao tornar mais seguro o controle da titularidade dos valores mobiliários ofertados. No entanto, cumpriria avaliar criteriosamente o seu impacto nos custos e, por conseguinte, no desenvolvimento do mercado.

É verdade que o emprego de novas tecnologias, notadamente da Distributed Ledger Technology, tem se mostrado promissor no desenvolvimento de provedores de serviços de infraestrutura eficientes e de custo reduzido, inclusive com relação à escrituração de ativos. No entanto, dado o caráter ainda embrionário dessas aplicações, seria prudente aguardar a sua disseminação no mercado brasileiro, permitindo, assim, a melhor avaliação de seus impactos, antes de torná-las obrigatórias para o mercado de crowdfunding.

Esses são os dilemas a serem enfrentados na reforma do marco regulatório do investimento participativo. Entre a busca por maior segurança e o desenvolvimento do mercado, há de se avaliar criteriosamente os custos e os benefícios das novas regras a serem introduzidas, tendo sempre em vista a preservação das características que se afiguram indispensáveis para as plataformas eletrônicas permanecerem aptas a atender às necessidades de financiamento das pequenas empresas e, de outra parte, aos interesses dos investidores de capital semente.

Gabriel Nassim de Saboya é head jurídico da plataforma de investimento EqSeed. Mestre em Regulação pela The London School of Economics and Political Science (LSE).

Pablo Renteria é sócio fundador do escritório Renteria Advogados. Professor de Direito Civil do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ex-diretor e ex-superintendente de processos sancionadores da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Notas

¹ Conforme disposto no Edital de Audiência Pública, em 2019 foram realizadas 60 ofertas públicas representando um valor total de R$ 59.043.689,00, um aumento de 28% em relação a 2018. O valor médio investido por pessoa aumentou de R$ 5.131,20 em 2018 para R$ 8.786,26 em 2019. O número de plataformas registradas na CVM subiu de 5 em 2017 para 26 em 2019.

² De acordo com o disposto no art. 4º da Instrução CVM n. 588, não há limite nos casos de investidor líder e investidor qualificado. Ademais, se a renda bruta anual ou os investimentos financeiros do investidor superar o montante de R$ 100 mil (o qual passaria para R$ 200 mil segundo a proposta em consulta pública), o limite anual de aplicação é ampliado para 10% do maior desses dois valores.

³ Conforme previsto no art. 3º da Lei n. 11.638, de 28 de dezembro de 2007.